terça-feira, 18 de maio de 2010
O vinil não morreu
Na era do mp3 o LP conquista novos adeptos entre ouvintes que buscam no revival do vinil uma forma de encontrar emoções inexistentes na música digital
Por Laís da Costa Novo
Para uma geração acostumada a ouvir música com a indiferença de quem realiza outras dezenas de tarefas simultâneas, pulando de faixa em faixa com a agilidade de um click, parece absurdo imaginar que, há pouco mais de 20 anos, as pessoas precisavam dedicar toda a sua atenção para escutar um disco. O vinil, mídia para reprodução de áudio que reinou absoluta entre o início dos anos 1950 e final da década de 1980, exigia de seus ouvintes cuidado e zelo, transformando em ritual o ato de colocar um bom disco para rodar.
Os dedos cuidadosos permitem que o LP deslize, deixando a proteção do álbum para o apoio das mãos. O olhar apurado examina o disco, certificando-se de que a mídia está limpa, livre de arranhões e pronta para tocar. O toca-discos precisa estar afinado para a tarefa, com a mola que determina o peso da agulha sobre o vinil devidamente regulada. O LP escorrega para o prato com um baque surdo e, posicionada a agulha, é hora de apertar o play e sentar no sofá para curtir o som despreocupadamente, até o momento de trocar o lado do disco.
Na era da mp3, esse ritual está vivíssimo nos hábitos de pessoas que nunca abandonaram o prazer de escutar um LP e conquista a cada ano novos adeptos entre ouvintes que buscam no revival do vinil uma forma de encontrar emoções inexistentes na música digital. Nesse contexto, as vendas de LPs cresceram 89% nos Estados Unidos, enquanto que o comércio de CDs sofreu queda de 14% em 2008, de acordo com pesquisa divulgada pela Nielsen SoundScan, principal sistema de informações sobre venda de música nos EUA, Canadá e fonte para as listas da Billboard. No Brasil, a comunidade Discos de Vinil, a maior do Orkut entre outros 113 grupos sobre o assunto, conta com a participação de mais de 21.500 usuários.
O comércio em território nacional ocorre na maioria das vezes por meio de lojas de usados em geral - sebos, principalmente - e pela própria internet, em sites especializados, MercadoLivre e listas de discos que os usuários compartilham entre si por e-mail e em comunidades virtuais. Lançamentos só podem ser adquiridos por importação, o que torna os preços salgados - na faixa de R$100 para cima - e mantém os consumidores de menor poder aquisitivo restritos aos discos usados.
Esse cenário está para mudar. Após fechar as portas em 2007, a Polysom – única fábrica de vinis da America Latina, com sede no Rio de Janeiro – foi adquirida pela Deckdisc, um dos maiores selos independentes do Brasil, e está em vias de retornar ao mercado para atender a demanda de gravadoras majors e independentes. O público interessado acompanha via Twitter as novidades sobre a reforma da fábrica. Em três meses, a @polysom já conquistou mais de 2 mil seguidores na rede de microblogs.
A expectativa é de que o retorno da produção no país traga ao mercado títulos novos, de artistas brasileiros e estrangeiros, por preços mais acessíveis, além de impulsionar a comercialização de aparelhos toca-discos em lojas no território nacional. Nos Estados Unidos e na Europa, onde o hábito de ouvir vinil nunca foi abandonado, a oferta e a variedade de equipamentos são amplas. A maioria dos modelos vem com conexão USB, o que facilita a conversão do áudio dos LPs para players portáteis como o iPod – prova de que as duas tecnologias – analógica e digital – podem, sim, coexistir, complementando uma à outra.
Espelho do real
Os defensores do vinil são unânimes: não existe comparação entre o som aberto de um LP e o som compacto de um CD. O advogado e técnico em eletrônica Joaquim Cutrim, dono de uma coleção com aproximadamente 700 discos e autor de nove blogs sobre o assunto, explica que a gravação em vinil ocorre de forma analógica e resulta em um produto que é espelho da realidade. O CD, por sua vez, é uma mídia digital que sofre compressão e perda de frequências importantes, o que implica em uma cópia remendada e infiel.
“O áudio do CD é tonalmente desequilibrado. Existe um evidenciamento maior dos médios e agudos em relação aos tons mais graves, que desaparecem. Já no caso do LP, existe harmonia entre os tons. Os médios são mais discretos, recobertos de graves aveludados”, analisa Joaquim. Ele destaca também que o vinil é um produto complexo, misto de fotografia, música e texto. “Você dificilmente tem esse diferencial em um CD, com aquele encartezinho de letras minúsculas e fotos pequenas”.
De acordo com Joaquim, o vinil reinou no Brasil em uma época desfavorável economicamente. O país sofria com a inflação e os produtos disponíveis no mercado, tanto os toca-discos quanto os próprios LPs fabricados nacionalmente, eram de qualidade duvidosa. “Na década de 1980 não havia a menor possibilidade do povão comprar produtos corretos para escutar um LP. Os toca-discos vendidos no Brasil eram de prato de plástico e proporcionavam um péssimo som. Além disso, os discos eram feitos com material requentado que era facilmente percebido pela cor acinzentada do vinil.”
Esse contexto, afirma o advogado, contribuiu para comprometer a imagem dos LPs no país e facilitou a rápida substituição da mídia pelos CDs na década seguinte. “Inclusive dizem que foi tudo uma estratégia para o CD chegar ao mercado com maior impacto”, acrescenta Joaquim. “Nos Estados Unidos e na Europa o vinil nunca foi abandonado. O problema é que o Brasil tem esse péssimo hábito de substituir apressadamente uma tecnologia antiga por algo que acabou de surgir. Isso é burrice. Você tem que conviver um tempo com as duas coisas para poder comparar”, critica.
O designer gráfico Alexandre Passold, o Xando, baterista da banda Os Pistoleiros - um dos nomes mais cultuados pelos amantes de música independente em Santa Catarina -, lamenta ter sido iludido pela propaganda massiva que exaltava o CD como uma mídia revolucionária. Ele recorda que, na adolescência, possuía uma coleção com aproximadamente 500 LPs, mas se desfez dos títulos quando o CD invadiu o mercado nacional.
“Eles vendiam o CD como música de alta tecnologia e, realmente, na época, o som era melhor do que os LPs de baixa qualidade produzidos no Brasil”, diz, ressaltando que outro fator responsável pela explosão da mídia digital nos anos 90 foi a implantação do Plano Real, que proporcionou uma baixa nos preços de todos os produtos e ampliou o poder aquisitivo da população. “Eu comprei muitos CDs naquele época”, recorda.
Anos mais tarde, Xando percebeu o erro que havia cometido ao se desfazer de seus LPs, parou de comprar CDs e voltou a adquirir discos de vinil em sebos e lojas de usados. Hoje o designer possui cerca de 250 títulos. “Prefiro gastar R$50 em um vinil do que pagar R$15 em um CD”.
Vinil na raiz
O comerciante Luiz Antônio Menegotto, dono da loja Roots Records, especializada em artigos de rock, heavy metal e reggae, está há 17 anos no mercado em Florianópolis e nunca desistiu do LP. Quando abriu o negócio possuía uma coleção pessoal de 3.500 discos e decidiu passar adiante. “Eu era recém-casado, com filhos pequenos, e pensei, pô, daqui a pouco essas crianças vão começar a quebrar tudo! Não, é melhor passar pra outro. Aqueles discos já estavam há tempo demais comigo”, conta rindo.
Desfazer-se dos discos não significou o fim da relação com o vinil. Pelo contrário. “Tenho discos espalhados pela casa toda: na sala, na cozinha, no quarto dos meus filhos. Só que eles não são meus, são da loja”, diz o comerciante. Hoje, Luiz coleciona apenas compactos e já possui cerca de 500 títulos. “Eu tenho qualidade e não quantidade. Tu tens que ter aquilo que tu gostas”, avalia, acrescentando, descansado, que não tem pressa, “a coleção cresce aos poucos”.
A Roots Records possui mais de 1.500 títulos à venda em vinil, entre discos usados e discos novos, importados. “Isso considerando só o que está exposto aqui na loja, porque na verdade eu já perdi a conta. Todos esses armários fechados que você está vendo aí estão cheios de vinil empilhados até o topo”, diz o vendedor. Luiz adquire o produto por meio de doações, trocas e compras que realiza nos próprios sebos da cidade, via internet ou em viagens para o interior do Estado e cidades como São Paulo e Curitiba.
Os discos importados são mais caros, geralmente na faixa de R$100. O novo álbum do Bob Dylan, Together Through Life, custa exatamente isso e traz de brinde um CD. Para definir o preço dos discos usados, Luiz considera, em primeiro lugar, o estado de conservação do exemplar, a raridade da obra, a tiragem do álbum na época em que foi lançado e, é claro, o próprio artista. “Qualquer coisa dos Beatles, dos Rolling Stones e do Elvis vai custar mais caro em qualquer lugar”, exemplifica.
Outro fator que influi no valor do produto é o grau de diferenciação da arte gráfica do álbum. “Se a capa tem algum lance diferente, como uma imagem holográfica, ou se o disco é de outra cor além do preto convencional ou tem uma imagem estampada, tudo isso valoriza”, explica Luiz, ressaltando que a relevância desses detalhes depende do grau de importância do artista.
O perfil dos clientes que compram LPs na Roots Records é variado e não está restrito a colecionadores, incluindo pessoas na faixa dos 20 anos. “Ultimamente a mídia tem promovido uma espécie de revival do vinil e contagiou muita gente jovem”, considera Luiz. “É um pouco de saudosismo, porque o vinil é romântico e a mp3 é sem graça. Mas é também uma forma de combater a pirataria”, avalia.
O aumento da procura por discos de vinil, num momento em que a popularidade do CD não para de cair, levou o comerciante a reduzir o espaço destes na loja para dedicar maior exposição aos LPs, além de investir em roupas e acessórios. “Vou tirar os CDs da vitrine e colocar só vinil”, afirma. “Daqui a pouco eu não vou ter uma loja, eu vou ter um museu”, diverte-se.
Laís da Costa Novo é estudante de jornalismo da Faculdade Estácio de Sá de Santa Catarina
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário